Gueixas
O mundo das gueixas é um dos mais comentados e curiosamente, um dos menos conhecidos do mundo. Por toda parte já se ouviu falar sobre o assunto. Mas ninguém sabe exatamente o que fazem essas mulheres. Lindas e anônimas, com rosto coberto pela espessa maquiagem branca, elas estão entre os símbolos mais marcantes do Japão. De reputação duvidosa, muitos ainda teimam em classificá-las como garotas de programa. Enigmáticas, são donas de um estilo de vida que já inspirou livros. O mais badalado deles, Memórias de uma Gueixa, do escritor americano Arthur Golden, está prestes a virar filme pelas mãos de ninguém menos que Steven Spielberg. Toda a fama desse universo se deve exatamente ao fato das gueixas serem inacessíveis para a maioria dos mortais. É um universo tão exclusivo que a maior parte dos japoneses nunca teve nem terá a oportunidade de conferir de perto. O privilégio é exclusivo de ricos empresários, políticos poderosos e renomados artistas. E só. Ninguém mais entra nesse restrito clube. Nem mesmo o dinheiro pode comprar o acesso. Se não a apresentação de alguém que já faça parte deste mundo, é impossível chegar até ele. Depois de vários meses de contatos, Made in Japan conseguiu permissão para entrevistar essas divindades do Japão. E, pela primeira vez na imprensa brasileira, desvenda o que acontece dentro das exclusivas casas de chá japonesas.
Uma noite pode sair por até 5 mil dólaresO universo das gueixas, mulheres-artistas que se dedicam a agradar aos homens por meio da dança, da música e da pura adulação é um território a parte do Japão. É um mundo de sonhos, permeado de romance, luxo e exclusividade. Para conhecer seus mistérios, poucos são os selecionados. Para manter o fascínio da arte, raras são as escolhidas.
Ser gueixa não é uma simples opção. Para se tornar mestras de entretenimento masculino, as maikos (aprendizes) precisam muito mais do que dotes artísticos e um rosto sem espinhas. Afinal, elas são treinadas para amansar os egos dos homens mais poderosos do Japão, sejam eles políticos graduados, abastados empresários ou temidos yakuzas (mafiosos). Todos milionários que não se importam em torrar fortunas, para serem inebriados sem suas próprias fantasias. Por outro lado, dinheiro não é passaporte garantido para o aparentemente inacessível universo das gueixas. O que significa que uma conta bancária polpuda não basta para ser bem-vindo nas luxuosas casas de chá em que as gueixas entretêm seus clientes em Kyoto, Tokyo e e outras poucas cidades japonesas. A chave de entrada é ser amigo de alguém com trânsito livre nessa sociedade privada. “E um universo de apresentações”, explica Michiyo Oishi, dona da casa de chá Hori Yae, em Miyagawacho, um dos cinco distritos de gueixas de Kyoto – onde a tradição surgiu no século XVII. “Até um estrangeiro pode entrar, desde que seja apresentado por um de nossos clientes”.
Cenas do cotidiano em Miyagawacho, badalado bairro de gueixas em Kyoto
Para chegar ao estágio de geiko (gueixa), as aprendizes acumulam anos preparação. São adolescentes que trocam a rotineira vida de família e escola para viver a paixão pela arte. “Quando tinha 15 anos, vi numa revista feminina uma reportagem sobre Kyoto, fiquei encantada com as gueixas e decidi que aquela seria a minha vida”, revela a maiko Fukuyuki, hoje com 18 anos e há três anos morando em Miyagawacho.
A vida de maikos com Fukuyuki está longe de ser rotineira, mas não deixa de ser espartana. Como já acompanham as gueixas nas festas de casas de chá (ocha-ya), têm a oportunidade, ainda muito jovens, de conhecer alguns dos homens mais influentes da política, das artes e dos negócios do Japão e do mundo. Para não decepcionar os anfitriões, aprendem desde cedo a dominar não só as peculiaridades do serviço a que se propõem, mas as próprias emoções. “É uma profissão atraente porque aqui fico ombro a ombro com pessoas importantíssimas”, exulta-se a maiko.
A noite embadalada pelo hipnotizante balé as conversas bem-humoradas para entreter os clientes
O serviço proporcionado pelas gueixas, ainda que perfeito, é muito simples se equiparado à pompa e ao mistério que envolve sua rotina. Elas são encarregadas de servir as bebidas e descontrair os clientes durante as festa. Encaminham as conversas para tema amenos, contando piadas e fazendo os homens se sentirem donos de um reino cujos limites são o tatami e as paredes. Carismáticas e sedutoras, elas sabem com trazer os clientes para seu mundo de fantasia. E um dos segredos é nunca contrariá-los.
Questões “fúteis” como dinheiro, por exemplo, jamais são abordadas durante as estadas no ocha-ya. Assim, um cliente jamais avistará uma conta em mesa após qualquer festa. A fatura lhe será enviada pelo corrreio uma semana seguinte. Um truque que faz os homens apagarem da memória qualquer tipo de preocupação enquanto apreciam o show das geikos – mesmo que soe estranho alguém com cacife para bancar uma festa de gueixas se enquadra no rol das pessoas com “problemas”, pelo menos financeiro. Dependendo do número de gueixas em uma festa (a média é uma para cada dois clientes) e do montante de uísque e saquê consumidos, o banquete no ocha-ya custa entre 2 mil e 5 mil doláres por cabeça. O valor é pago por um determinado anfitrião, que pode ser um ator de kabuki agradando amigos ou empresários bajulando pessoas que lhe interessem nos negócios.
De volta ao dia-a-dia de tarefas domésticas e estudos no oki-ya
Até tarefas simples, como servir saquê, são executadas pelas gueixas com movimentos encantadores. Atitudes derivadas de um exaustivo treinamento que inclui também o aprendizado das regras de etiqueta da cerimômia do chá, o requintado ritual japonês para se tornar chá verde. A música é outra especialidade das moças, que sabem tocar pelo menos um ou dois instrumentos característicos da música de gueixas, chamada de kouta.
Muitas se arriscam ainda a cantar. Para conseguir atuar em tantas artes diferentes, contam coma experiência de mestres como Inoue Yachiyo, 92 anos, que ainda ensina dança para as gueixas em Kyoto e é considerada Tesouro Nacional do Japão – principal comenda do governo para homenagear as pessoas de destaque no país.
Com tantos atrativos, são comuns casos de homens que extrapolam os limites na ocha-yas. Mas nem quando eles se sentem poderosos a ponto de achar que podem se engraçar mais intimamente com as gueixas, elas ousam ser rudes. Hábeis, impõem seus limites sem ser desagradáveis. E, ao menor sinal de saia justa, não hesitam em exibir atributos extras, dançando trechos de um balé fantástico e compenetrado. A recompensa vem quando elas sentem os clientes hipnotizados pelos movimentos delicados, mas regidos por um intimidador olhar vazio, como se tudo mais fosse apenas peça decorativa no ritmo inebriante de seu espetáculo.
Algumas casa de chá, como a Hori Yae, em Kyoto, mantém suas próprias gueixas. Outras solicitam os serviços das geikos de um oki-ya. É para lugares com esse que adolescentes se dirigem quando decidem trocar os lares para realizar um sonho de se tornar gueixas. O processo de admissão de novas garotas funcionam por apresentação. Semanalmente, Michiyo Oishi, dona da ocha-ya Hori Yae, em Kyoto, recebe currículos de candidatas indicadas por amigos e clientes. Elas são avaliadas, principalmente, pela beleza, e charme. “Tem de ser bonita e não pode ser gorda”, revela Oishi.
Caso seja aceita na comunidade gueixa, a aprendiz (chamada de maiko) terá de “trocar de família’. A okasan (dona da casa de gueixa) será sua nova mãe e as outras gueixas sua irmãs. Uma geiko será sua irmã de modo especial. Chamada de “irmã mais velha”, ela é a principal responsável pela formação da nova gueixa, num processo baseado na observação. O ensinamento não é gratuito. A maiko passará a acompanhar a irmã mais velha diariamente, funcionando como sua auxiliar no dia-a-dia. Fase que dura cerca de um ano, o último antes de ela se tornar gueixa. Antes de ser entregue a tutela da irmã mais velha, porém, a aprendiz passa de 3 a 5 anos recebendo lições de “etiqueta gueixa” de sua okasan. Mas a “mamãe” não é boazinha 24 horas por dia. As maikos são treinadas com rigidez e recebem uma boa carga de afazeres domésticos dentro do oki-ya. Já houve o caso de uma iniciante que abandonou o aprendizado e processou o oki-ya por exploração no trabalho. “É um mundo ultra-rigoroso”, admite a geiko Kimisome.
Em nome da profissão, as gueixas abdicam até de seus nomes. Quando passam a integrar oficialmente o oki-ya, elas ganham apelidos. O sobrenome? Gueixa, que em japonês significa pessoa que vive da arte. Namorados entram na lista de concessões feitas pelo oki-ya à gueixa. Ou seja, ela tem o direito de namorar, mas desde que isso seja feito em suas poucas horas de folgas. O “eleito” também não pode pode ser estar incluído em sua lista de clientes e é proibido de pisar no oki-ya, onde a gueixa também jamais poderá atender a um telefonema sequer seu. Casar com o heróico pretendente também está fora de cogitação, sob pena de a gueixa Ter de enterrar definitivamente sua carreira.
Gueixas não podem se casar, mas podem ter filhos, que serão muito bem recebidos e criados dentro da comunidade. Se o bebê de uma gueixa for do sexo feminino, ótimo, é candidata em potencial a ser uma geiko no futuro. Caso seja homem, estará fadado a ser um papel secundário dentro do oki-ya, com motorista, por exemplo. Afinal, estamos falando de uma família na qual as mulheres dão as cartas.