Go: sabedoria no tabuleiro
Aprendem-se as regras do go em poucos minutos, porém leva-se uma vida inteira para se tornar um mestre em suas técnicas. “É um jogo que usa os materiais e os conceitos mais elementares – linha e círculo, madeira e pedra, branco e preto – combinando-os por meio de regras simples para gerar estratégias sutis e táticas complexas que abalam a imaginação”. Essa definição, dada pelo jogador Kaoru Iwamoto ao go, sintetiza o fascínio que o jogo exerce nos povos do extremo oriente. Iwamoto é profissional de 9º dan, o que se assemelha à faixa preta do judô.
A semelhança da hierarquia não é mera coincidência: para muitos, o go é a “arte marcial do espírito”, exigindo todos os treinamentos e pré-requisitos de um praticante das artes marciais. Ou seja, requer concentração, equilíbrio, disciplina. E, acima de tudo, respeito pelo adversário do outro lado do tabuleiro.
Entre os famosos praticantes de go, estiveram o xogum Ieyasu Tokugawa, o escritor prêmio Nobel Yasunari Kawabata e o matemático norte-americano John Nash, aquele do filme Uma Mente Brilhante, com o ator Russel Crowe. Nash era realmente praticante de go – prova disso é a presença de seu nome na lista do Clube de Go da Universidade de Princeton.
Mas de que modo funciona esse jogo e por que ele é considerado, por alguns, tão atraente? Uma das respostas pode ser esta: aprendem-se as regras do go em poucos minutos, porém é necessária uma vida inteira para se tornar um mestre em suas técnicas.
Como jogar Go
Para jogar, são necessários dois jogadores, o tabuleiro e as peças. Os adversários se alternam, colocando pedras brancas e pretas em um tabuleiro de linhas que se cruzam. As pedras não se movem, mas são capturadas quando se encontram completamente cercadas pelas peças do adversário. Tanto que, em chinês, o go se chama WeiQi, que significa “jogo de cercar”. Podem ser envoltos peças sozinhas ou grupos inteiros.
Quando o tabuleiro é completamente coberto por grupos que não podem ser capturados, o jogo acaba, e vence o que tiver o maior território fechado, ao que se soma o número de peças adversárias capturadas.
As regras são basicamente essas, salvo um ou outro caso específico. As possibilidades de cada jogada são múltiplas, o que dá ao jogador imensa liberdade de atuação – o tabuleiro tem 19×19 linhas na horizontal e na vertical, e cada peça pode ser colocada em qualquer uma das intersecções formadas.
No entanto, ao contrário do que pode parecer, as partidas geralmente são rápidas: duram de uma a duas horas, no máximo. Pouco, se for comparado ao xadrez. Um jogo normal leva em média 250 movimentos para ser completado.
A história
Contudo, havia partidas que perduravam por meses. Os jogadores chegavam a ir para casa após ter feito uma única jogada. Foi o que aconteceu em uma das partidas mais famosas do século 20, no ano de 1933, entre o chinês Go Seigen, hoje considerado um dos três maiores nomes do go no século passado, e Honinbo Shusai, líder da escola de go mais conhecida do mundo, que levava o nome de sua família há quase 400 anos.
A partida entre Seigen e Honinbo atraiu a atenção de todos, extrapolando os limites do tabuleiro. Muitos viam na disputa um duelo maior entre a China e o Japão, motivo pelo qual as janelas da casa de Seigen chegaram a ser destruídas por nacionalistas. Embora contestada, a vitória foi de Honimbo.
Por muito tempo, o jogo de Go foi dominado no Japão por clãs como a família Honinbo. O mesmo que acontecia, por exemplo, no kendô (a arte da espada), em que os conhecimentos e as técnicas eram passados de geração em geração, ao mesmo tempo em que eram ensinados aos interessados. Essa situação teve início com o patrocínio oficial do governo Tokugawa ao go, em 1612, o que possibilitou a profissionalização dos jogadores.
Não há dúvidas de que foi no Japão onde o jogo teve seu maior desenvolvimento. No entanto, como é comum na cultura nipônica, o go teve sua origem na grande vizinha China, há 4,5 mil anos.
Não é possível saber ao certo o propósito original com que foi criado – especula-se que talvez tenha sido um ábaco primitivo ou ainda um instrumento usado por políticos chineses.
Pode ser também que tenha sido uma invenção de algum imperador chinês para estimular a capacidade de seu filho. A versão mais aceita, entretanto, é a de que o go estava ligado à arte da adivinhação.
A base para isso está em afirmações como a do livro “O clássico do go”, publicado por volta de 1050, pelo escritor chinês Chang Nui: “Há 360+1 interseções no tabuleiro de go. O número um é supremo e ocupa a última posição, governando os outros quatro quartos formados pelo restante dos números. 360 representa o número de dias no ano (lunar). A divisão do tabuleiro em quatro quartos simboliza as quatro estações. O balanço entre Yin e Yang é o modelo para a divisão igual das 360 pedras em preto-e-branco”.
A transformação
O go foi usado durante muito tempo como oráculo e jogo de treinamento de guerra, mas também tem a ver com arte: a disposição das peças brancas e pretas tem um forte apelo estético
É difícil saber ao certo como o go deixou sua origem mística para se tornar um jogo intelectual. Porém, vale ressaltar que durante muito tempo sua função foi servir de campo de batalha em miniatura aos políticos da época.
Além das finalidades bélicas e místicas, há também ligações do goban (tabuleiro de go) com a arte. A disposição das peças brancas e pretas e o modo como dominam a superfície do tabuleiro têm um forte apelo estético. Mas não é só isso: “O jogo do preto sobre o branco, do branco sobre o preto, tem o propósito da arte criativa, tomando essa forma. Contém em si o fluxo do espírito e a harmonia da música. No jogo, tudo se perde quando se toca uma nota errada.”, escreve Yasunari Kawabata em O mestre do go.
Nos dias de hoje
Atualmente, o go desfruta grande popularidade no Oriente e começa a ser divulgado no Ocidente. São 25 milhões de jogadores ao redor do mundo, a maioria no extremo oriente. Na Europa, estima-se que haja por volta de 100 mil jogadores.
Nos Estados Unidos, cerca de 20 mil. Certa vez, foi publicado que o ex-presidente do Citibank, John Reed, incentivava seus executivos a praticar go como forma de desenvolvimento do raciocínio estratégico. O mesmo se fazia no Japão medieval. Ainda hoje grandes empresas japonesas como a Nissan, a Toyota e a Japan Airlines utilizam o mesmo método.
No Brasil, o jogo é disputado principalmente por descendentes de japoneses. Mas cada vez mais está atraindo outros públicos. “Com o go, passei a lidar melhor com a minha ansiedade”, afirma Didier Lévy-Sousan, de 47 anos, jogador de 1º dan amador.
“É um jogo que reflete muito a personalidade de quem joga. Pelo menos da minha.”, conta Humberto de Oliveira, de 19 anos, que já conhecia o jogo, mas se sentiu incentivado a praticar ao assistir ao anime Hikaru no Go (ver box na página anterior). Flávio Hana, de 22 anos, compara: “Gosto do go porque possui um lado intuitivo mais forte que o xadrez”.
O Japão ainda possui o maior número de jogadores fortes do mundo. Porém, em qualidade, outras nações já encontraram nível semelhante ao japonês: é o caso da China e da Coréia do Sul.
Os japoneses, tidos como jogadores conservadores que preferem seguir caminhos predefinidos, estão perdendo espaço para a criatividade dos vizinhos. E, quem sabe, futuramente também para adversários ocidentais. E até brasileiros.
Para saber mais
A associação internacional NIHON KI-IN do Brasil oferece aulas gratuitas.
Endereço: R. Dr. Fabrício Vampré, 116, metrô Ana Rosa, São Paulo, SP.
Tel.: (11) 5571-2847
O tabuleiro custa 10 reais (para treinar em casa). Os encontros acontecem na sexta-feira (17h às 22h) e no sábado (14h às 19h).
Site:
Associação Brasileira de Go: abrago.org
Para jogar no computador:
www.kiseido.com
http://games.yahoo.com
www.intelligentgo.org/en/computer-go/
Livro
As 36 estratégias
Go vira mangá e animê
Se no Japão muitos jovens estão praticando go, é fato que muito disso se deve ao anime/mangá Hikaru no go, lançado por lá em 1998.
O desenho mostra as aventuras de Hikaru Shindo, aluno da sexta série que conhece um fantasma de um grande jogador de go da Era Heian. Hikaru se interessa pelo jogo e passa a praticá-lo com a ajuda do fantasma, enfrentando juntos diferentes situações. Grande parte do sucesso da série se deve ao modo como Hikaru e outros personagens crescem e amadurecem enquanto disputam emocionantes partidas de go. Depois de cada capítulo do anime, uma professora de carne e osso dá aos telespectadores noções de como jogar.
Além do desenho, a internet também tem sido fundamental na divulgação do go. Os jovens encontram facilmente adversários virtuais em todo o mundo, a qualquer hora de qualquer dia. Tanto que até o personagem Hikaru aparece jogando no computador em um episódio da série.
Reportagem: Thiago Minami