Um desenhista de mangá no Japão
Como você imaginaria o estúdio de um mangaká profissional? Estantes de mangás, mesas cobertas com pilhas de ilustrações, rascunhos, story boards e materiais do ofício como pincéis, lápis, canetas e réguas espalhadas por todo canto, certo? Pelo menos era essa a imagem que eu tinha até conhecer o desenhista Kamiya Yuu. Mas antes de saber como é o seu ambiente de trabalho, é imprescindível fazer uma apresentação do próprio autor: ele é o primeiro mangaká profissional brasileiro a ter suas obras publicadas por uma editora japonesa.
Da mesma forma que dizem que “todo brasileiro já quis ser um jogador de futebol”, a maioria dos adoradores de anime e mangá um dia sonhou em ter uma obra de sua autoria publicada. Kamiya Yuu não só conseguiu realizar tal feito, como também provou que o mercado de quadrinhos nipônico não é tão fechado para artistas estrangeiros como aparenta ser. Quando a equipe da redação visitou seu apartamento, na província de Saitama, outra grande surpresa!Exceto as estantes de mangá, nada de milhões de papéis com desenhos e rabiscos espalhados pelo ambiente de trabalho. Em vez de bagunça, muita organização. Quando seguimos em direção ao seu “escritório” (Kamiya trabalha em sua casa) entendemos o porquê: só sua mesa tinha 6 monitores de computador e um tablet fora das proporções convencionais.
Sua escrivaninha mais parecia uma cabine de controle retirada de um filme no melhor estilo Guerra nas Estrelas. Tanta tecnologia dispensava o desenho a mão. Na tela do enorme tablet, traços digitais do seu mais novo mangá: Greed Packet Unlimited.
“Não são todos os mangakás que utilizam equipamentos e softwares tão modernos. A maioria ainda prefere desenhar com papel e tinta à moda antiga”, explica Kamiya, em japonês sem sotaque.
No mesmo ambiente, outros três assistentes, também devidamente equipados com máquinas de última geração, trabalhavam risco por risco com extrema cautela. Se um traço saía errado, nada de borrachas: um toque no teclado basta para apagar o erro.
Cada monitor da mesa de Kamiya tem uma função. Em três deles, o chefe pode observar o andamento do serviço de seus ajudantes, enquanto nos outros restantes estão abertos dezenas de programas como Photoshop e ComicStudio. Porém, com um toque da ponta de sua caneta digital sobre o tablet, Kamiya pode alterar a configuração das telas, arrastando-as para lá e para cá. Como em um concerto de música em que o maestro comanda o ritmo da orquestra, o mangaká hightech organiza o trabalho do dia-a-dia.
“Não são todos os mangakás que utilizam equipamentos e softwares tão modernos. A maioria ainda prefere desenhar com papel e tinta à moda antiga”, explica Kamiya, em japonês sem sotaque.
Apesar da fisionomia mestiça puxada mais para o lado verde-amarelo, o autor não mantém fortes vínculos com a terra-natal, muito pelo contrário, “às vezes me dou conta de que não nasci aqui.
Raramente uso o português. Entendo tudo que ouço no idioma, mas sinto dificuldade em montar uma frase”, comenta. Kamiya chegou ao Japão cedo, aos 7 anos, quando seus pais decidiram se tornar dekasseguis. Na época, o mangaká ainda era chamado pelo seu verdadeiro nome: Lucas Thiago Furukawa.
Dupla Identidade
Lucas Thiago Furukawa
As lembranças do Brasil remetem à vida no interior, quando a família de Lucas morava em Uberaba, Minas Gerais. Assim como muitos nikkeis, seus pais resolveram se mudar para o Japão atrás de estabilidade financeira no começo da década de 90. Sem muito contato com a cultura nipônica até então, Lucas só sabia falar “arigatô”. A comunidade brasileira ainda não desfrutava da infraestrutura atual, por isso o choque cultural foi grande quando ele entrou para o shogakko (primário) nas escolas japonesas. Por ser “diferente” e por não conseguir se comunicar, Lucas inevitavelmente sofreu nas mãos dos colegas de classe.Mas à medida que os anos se passavam, a barreira do idioma ia se tornando menor, e uma nova paixão ia crescendo. “Comecei jogando videogame. Gostava do gênero RPG e na época que estava entrando para o chuugaku (ginásio) já conseguia ler em japonês, o que me motivou a assistir animes e ler mangás”, relembra. Depois das turbulências vividas na fase de adaptação ao novo país, Lucas se identificou completamente com a cultura pop e se tornou um legítimo otaku do arquipélago.
Assim como muitos fãs das animações e quadrinhos japoneses, Lucas decidiu se aventurar como desenhista. Quando tomou gosto pela coisa, um colega que havia percebido o seu potencial o aconselhou a participar do Comic Market, evento que reúne milhares de mangakás amadores em Tokyo para expor seus trabalhos. Em menos de um mês, Lucas criou uma história que envolvia personagens de mangás já consagrados, no melhor estilo “dojinshi” e se inscreveu na exposição. O resultado não foi dos melhores, mas a experiência havia lhe agradado. Começou a apresentar seu trabalho em todas as edições da feira até que um dia o inesperado aconteceu. Um “olheiro” de uma uma editora de mangás havia gostado do seu estilo.
Kamiya Yuu
Apesar de não estar satisfeito e considerar o próprio traço “feio” na época, Lucas recebeu a proposta de fazer ilustrações para o site da editora. Os dias de “bico” duraram aproximadamente meio ano, até o rapaz adotar o pseudônimo “Kamiya Yuu” e ser convidado a publicar sua própria obra nas edições mensais da revista Dengeki Maoh. Como qualquer outro mangaká profissional, Lucas, ou melhor, Kamiya Yuu, tinha direito a 33 páginas para elaborar a história que quisesse, é claro, sempre com a supervisão de um editor. Com a nova proposta – e com as economias dos bicos – ele se mudou para a província de Saitama, próxima à região que faz divisa com Tokyo. Começava uma nova vida sob o codinome Kamiya Yuu.
Antes de se isolar no escritório para desenhar o primeiro capítulo de “Earise” (Earth), o autor lembra que estava empolgado e se sentia preparado para lidar com a nova profissão.
Ledo engano, comentaria mais tarde. “Durante a produção das 33 páginas que dura aproximadamente 20 dias, acho que consegui dormir um total de 50 horas. Foi realmente muito sacrificante e cansativo, sem contar a pressão. (Além de seu mangá, outros profissionais do ramo, alguns com anos de experiência, também desenhavam para a publicação). Fiz e refiz cada página várias vezes, pois nada me satisfazia. Foi realmente um inferno!”, conta Kamiya.
A experiência parece ter sido bastante traumática, pois o mangaká afirma que sentiu mais alívio do que alegria quando segurou nas mãos o primeiro tankobon de Earise. (Depois que os capítulos dos títulos publicados nas revistas acumulam um certo volume, eles ganham o tradicional formato livro, os chamados tankobon).
Depois de três anos compenetrado com Earise, e de certa forma, ganhando espaço no mercado do gênero, Kamiya recentemente lançou outra obra, intitulada “Greed Packet Unlimited” pela mesma editora. Além da segunda empreitada, os pedidos de ilustração foram aumentando, fazendo com que o mangaká pedisse a ajuda de mais três assistentes, sendo que um deles, o responsável pelas artes em 3D, divide o mesmo apartamento. As outras duas ajudantes também costumam “morar” na casa em épocas de muita correria.
Em compensação, Kamiya pôde bancar o equipamento supermoderno, facilitando o serviço diário. Por conta do processo que utiliza tecnologia de ponta, um dos empecilhos que o desenhista encontra atualmente é contratar assistentes que saibam mexer nos softwares e tablets de última geração.
Esta reportagem foi publicada originalmente na revista Made in Japan 137, de fevereiro de 2009