Atores nikkeis falam sobre participação em ‘Corações Sujos’
O filme Corações Sujos, dirigido por Vicente Amorim e baseado no livro homônimo de Fernando Morais, tem estreia prevista para outubro no Brasil. O elenco foi composto por atores japoneses e brasileiros, com grande participação de descendentes (nikkei).
Corações Sujos trata do conflito entre imigrantes japoneses no Brasil que aconteceu no período pós-Segunda Guerra Mundial. O grupo que acreditava que o Japão havia vencido era chamado “kachigumi” ou “vitoristas”; aqueles que aceitavam a rendição eram os “makegumi” ou “derrotistas”, chamados de “corações sujos” pelos kachigumi.
O Made in Japan conversou com os atores Henrique Kimura, Ricardo Oshiro, Ulisses Sakurai e Talles Hasegawa, que contam sobre a experiência de ter participado de um filme que, em muitos pontos, toca a sua própria história.
Entrevista: Atores do filme Corações Sujos
– Como foi o processo de seleção do elenco nikkei?
Henrique Kimura: A produtora de elenco, Patrícia Faria, fez uma grande pesquisa na comunidade japonesa para selecionar o elenco, tanto entre atores como não-atores. Ela foi muito atenciosa e profissional, preocupada com a cultura japonesa. Foi um teste muito justo. Há muitos atores nikkeis profissionais, formados em escolas de teatro etc. Mas o que falta, desde sempre, é oportunidade para o pessoal mostrar o trabalho.
Ricardo Oshiro: Fizemos muita divulgação do teste, para que o máximo de pessoas pudesse participar. Isso mostra ao mercado que há interesse. Por exemplo, em um episódio futuro de 9mm [seriado policial produzido pela Fox no Brasil], haverá participação de muitos atores nikkei. Posso dizer que é fruto dessa divulgação junto às produtoras, pois isso estimula os roteiristas a criarem uma história que comporte isso.
[Observação: Henrique e Ricardo ajudaram na seleção do elenco e atuaram como contraponto para os candidatos nos testes. Eles também tiveram que passar pelo mesmo teste para integrar o elenco.]
– Como foi a preparação para o papel, já que vocês interpretariam japoneses?
Ricardo: Nós procuramos um professor de japonês, que nos explicou não apenas o idioma, mas também o que havia por trás da fala, sobre o pensamento japonês.
Henrique: O Oshiro e eu ficamos uma semana na comunidade Yuba. A gente queria entender o “Yamato Damashii”, que é o “espírito japonês”. O Yuba é totalmente o Yamato Damashii. A primeira língua que eles aprendem é o japonês. Já começa por aí. A gente queria sentir esse espírito, mesmo no Brasil. Aprendemos muito.
Talles Hasegawa: A minha preparação foi um pouco diferente, comparando com a do Oshiro e do Henrique. Na época, eu estava participando de aulas de dohô (movimento de corpo). O professor dessas aulas é o Toshi Tanaka, que também participou do filme. Ele é japonês e vive aqui no Brasil. Durante as aulas, eu absorvia algumas das posturas e gestos dele. Foi uma boa experiência.
– Falem um pouco sobre seus personagens.
Henrique: Eu sou um dos tokkotai, grupo de kachigumi que persegue os makegumi. Lógico, eles cometeram assassinatos, então eram assassinos por causa disso. Mas a cabeça do cara, de um tokkotai, não é a cabeça de um assassino. Ele era um cara simples, que trabalhava na roça. Eles nunca haviam pegado armas. Então penso que as pessoas, quando forem assistir ao filme, precisam ver esse outro lado, o contexto dele. Não estou protegendo. Eles fizeram coisas erradas, mas não eram assassinos, e isso que faz um personagem interessante.
Ricardo: Eu fiz o papel de um makegumi. Para mim, eles tinham um sentimento de dever. O mesmo sentimento que motivava o kachigumi, motivava o makegumi. É o dever de falar a verdade, de fazer alguma coisa, não importa se alguém diz que vai matá-lo, ele vai até o fim. Então creio que esse sentimento é o mesmo do kachigumi, porque, na verdade, eles estavam no mesmo lado.
Talles: O meu personagem faz parte de um grupo que tentou invadir uma delegacia. Eles acabam sendo presos e interrogados. O oficial pergunta: “quem ganhou a guerra?”. Nós afirmamos “Japão ganhou a guerra”. Esse é meu personagem. Nós estávamos convictos de que o Japão nunca perderia uma guerra.
– Ulisses, você fez a principal cena de ação do filme com o ator Tsuyoshi Ihara. Como foi?
Ulisses Sakurai: Foi um desafio. Ele, além de ótimo ator, tinha experiência com cenas de ação. Os dublês (Luiz e Douglas) sofreram comigo para ensinar os movimentos da coreografia. No fim, deu tudo certo e não matei ninguém acidentalmente.
– Sobre a mesma cena, você tem alguma preparo? Por exemplo, pratica alguma arte marcial etc?
Ulisses: Cheguei a fazer esgrima (ocidental), porém, parei há seis anos. Resumindo, estava com físico de nerd. Tive que puxar ferro antes das filmagens para melhorar o aspecto geral.
– Como foi o contato com o elenco japonês?
Henrique: O Eiji Okuda, que faz o coronel Watanabe, falou uma coisa muito legal no início. Ele falou que não adianta ele, o Ihara e os outros atores japoneses se destacarem, e a outra parte do elenco, não. Ele falava que o conjunto tinha que estar bom. Tanto que ele teve a preocupação de dar um workshop para a gente em uma tarde para ensinar como é a postura do japonês. Ele é ator, diretor, um artista na essência.
Ricardo: Tivemos um convívio normal com todos os atores. Lógico, não havia tempo para criar intimidade, amizade, mas o Eiji Okuda era diferente mesmo. Gostava de conversar, de conhecer as pessoas. Ele é de teatro, então tem esse espírito de coletividade que o profissional deve ter.
Ulisses: Existia um distanciamento de uma relação aluno-professor. Eles realmente são muito bons. Fiquei impressionado principalmente pelo sr. Eiji Okuda. Ele representou ao vivo as qualidades técnicas dos atores orientais que aprendi na teoria da escola de teatro.
Talles: Eu diria que o contato que tive com o elenco japonês foi muito agradável. Não tive a oportunidade de conversar com todos. Por outro lado, Eiji Okuda foi a pessoa com quem mais me senti “em casa”. Ele até chegou a beber conosco depois de um dia de filmagens [risos].
– O filme coloca a questão como algo de bem e mal?
Ricardo: Não vejo isso no roteiro. Não é maniqueísta, e creio que isso é mérito do filme também.
Talles: Não. Diria que o filme coloca o conflito como algo dividido entre orgulho e o enfrentamento da realidade.
Henrique: Tem gente que acha que a Shindo Renmei foi uma seita superorganizada de militares que treinava jovens para matar. Não tem nada disso. É folclore, ficou no imaginário. Havia golpistas, pessoas ganhando dinheiro em cima disso. O filme mostra esse contexto.
– Conte-nos alguma curiosidade das gravações.
Ricardo: Em uma cena no bar, eu não tinha falas. Chegou no dia, na gravação, me falaram: “As falas vão para você”. Na hora, o Eiji Okuda chegou e me ajudou. “Tá bom. Vai lá”, ele disse. Em outra cena, também recebi as falas em última hora. De novo, passei a cena com o Eiji Okuda. Era apenas uma frase, mas ele se preocupou com cada detalhe, com a entonação…
Ulisses: Deixei a barba e bigode crescer pela primeira vez na vida. Um amigo meu (que não sabia da participação no filme) chegou a comentar: “Que barba horrível! Você está parecendo aqueles bandidos do livro Corações Sujos”.
Talles: Foi uma cena em que estávamos em cima de um caminhão que tinha que percorrer um trecho de uma estrada de terra. Antes de iniciarmos a gravação, o dono de uma fazenda vizinha veio falar conosco. Ele disse que pensou que éramos sem-terra e que iríamos invadir. Até o diretor Vicente caiu na gargalhada depois de ouvir essa.
Henrique: Tem uma cena que, basicamente, era só descer do caminhão. Essa cena, no ensaio, demorou muito tempo. Porque havia toda uma lógica, uma hierarquia para descer, primeiro o mais velho, que comandava etc.
- O conflito foi um modo para alguns fugirem da realidade e dizer que o Japão foi vitorioso. Entretanto, me ficou um sentimento de arrependimento. Meu personagem é kachigumi e mesmo eu sabendo que eles tinham seus propósitos, me sinto mal pelas famílias que perderam seus parentes. Sei que não sou aquele que cometeu os crimes, mas devido ao meu personagem, peço desculpas a todas essas famílias – Talles Hasegawa
- [Durante as filmagens] Eu sempre pensava nas minhas avós, que viveram aquela época. Meu pai nasceu em 1945, em Bastos. Em 1946, minha avó quis sair de lá e foi para Mogi das Cruzes. Certamente foi por causa disso. Daí pensei nelas: ‘estou fazendo este filme por elas’. Foi uma coisa meio louca porque até meu pai comentou: ‘você está filmando uma coisa que sua avó vivenciou’ – Henrique Kimura