Conteúdo da Hashitag #18

A febre dos Gurume Manga

Comida em quadrinhos

Capa de Totsugeki Ramen
Totsugeki Ramen foi um dos pioneiros

No Japão, meca do mangá, tem quadrinhos de todos os gêneros possíveis, mas nesta última década, o que se destaca nas prateleiras das livrarias e quiosques são os mangás sobre comida.

Trata-se de uma tendência que acompanha também a visibilidade da gastronomia como um dos prazeres urbanos em evidência. São chamados de “gurume manga”, ou mangás gourmet.

Até agora, foram publicados 168 títulos sobre gastronomia, a maioria com longa duração. Um dos títulos mais importantes e que deu origem a esta categoria é “Oishinbo”, que se iniciou em 1983 e continua a ser publicado mensalmente na revista Big Comics.

O gurume manga é definido como um mangá que tem como tripé temático a comida, o cozinheiro e os ingredientes. O roteiro de um gurume manga não pode ficar restrito a dramas pessoais envolvendo refeições, mas analisar em profundidade as questões sociais, ambientais e culturais que envolvem os alimentos.

Hoje, o gurume manga se consolidou como um importante gênero e praticamente todas as revistas semanais de quadrinhos publicam pelo menos um título gastronômico em série. Alguns chegam a mostrar o processo de preparação de pratos, dando receitas detalhadas. Há até publicações de livros gastronômicos reunindo especificamente pratos que foram tema em mangá.

Os primeiros gurume manga

Cake Cake Cake
Capa do mangá Cake Cake Cake
O alimento é a base de sobrevivência da humanidade. A partir dessa premissa genérica, os roteiristas criam suas histórias movimentadas por duelos entre chefs, concorrência entre restaurantes ou intrincadas pesquisas sobre os segredos e procedência dos ingredientes.

O pesquisador de mangá Nobuhiko Saito destaca três condições para definir o gurume manga:

  • Apresentação do prato
  • Apresentação do processo de preparação do prato
  • Expressão artística de seus sabores

Segundo Saito, os primeiros mangás que se inserem nesta categoria surgiram em 1970: “Totsugeki Ramen”, de Mikiya Mochizuki, e “Cake, Cake, Cake”, de Moto Hagio, o primeiro como shonen manga (dedicado aos meninos), e o segundo como shojo manga (dedicado às meninas).

Totsugueki Ramen” foi provavelmente a primeira HQ sobre comida do mundo e as histórias são narradas com vários episódios de guerras como pano de fundo, num cenário em que o alimento é escasso e precioso. Já “Cake, Cake, Cake” se inspirou em musicais da Broadway e usava a expressão corporal como manifestação do sabor.

O fenômeno Oishinbo

O grande sucesso deste gênero de mangá, contudo, só aconteceu em 1983 com o lançamento de “Oishinbo”, com roteiro de Tetsu Kariya e desenhos de Akira Hanasaki. Era uma época em que o Japão começava a adotar o costume de comer fora. O restaurante passou a ser local para tratar de negócios, namorar e levar a família nos fins de semana.

Oishinbo” foi um propulsor da gastronomia no Japão, provocou um aprimoramento dos restaurantes, especialmente os que servem cardápio estrangeiro, promovendo a ida de jovens chefs ao país de origem de suas especializações culinárias para buscar as receitas e o processo de preparo na fonte. O mangá teve também a força de abrir o mercado para a importação de produtos culinários estrangeiros.

Oishinbo capa
O fenômeno 'Oishinbo'
Hoje, o Japão é o maior consumidor de produtos gastronômicos do mundo e ninguém imaginaria que foi um inofensivo mangá que impulsionou esse interesse pelo consumo de alimentos de boa qualidade e procedência.

A história se desenrola numa redação de jornal, que incumbe um casal de jornalistas a desenvolver o projeto “O Cardápio Definitivo” para comemorar o centenário da empresa. Para isso, os jornalistas pesquisam técnicas de chefs renomados ou vão à caça de receitas não reveladas. No entanto, o jornal concorrente lança um desafio com o projeto “O Cardápio Máximo” e deflagra um dramático duelo recheado de sabores.

O mangá se notabilizou na mídia também por seus aspectos polêmicos, envolvendo questionamentos sobre aditivos químicos empregados nos alimentos industrializados e sobre transgênicos. Em outros capítulos, desferiu críticas sobre novos processos de industrialização do shoyu com soja desengordurada e causou furor em alguns fabricantes.

Na maioria dessas polêmicas, havia uma questão ética que era levantada pelo autor. Após o terremoto e tsunami na região nordeste do Japão, em 2012, por exemplo, “Oishinbo” passou a mostrar não só as agruras das vítimas como também a contaminação dos alimentos, causada pela radioatividade que escapava das usinas nucleares atingidas e sua consequência na saúde pública.

“Oishinbo”, lançado em 1983 na revista Big Comics, continua sendo publicado e é um dos mangás de maior longevidade no mercado japonês. Atingiu a astronômica tiragem de 130 milhões de exemplares, sendo o 7º mangá mais lido no Japão.

Seus lançamentos continuam a provocar filas nas livrarias, demonstrando a sua força como formador de opinião em assuntos gastronômicos. Com o sucesso do mangá, vieram as adaptações para a série de animês para televisão, que foi transmitida entre 1988 e 1992. Já em 1994, se transformou numa minissérie em cinco episódios anuais, que foi ao ar pela Fuji Television até 1999. Com o crescente sucesso do mangá, a Fuji produziu mais três episódios de duas horas cada em 2007, atingindo uma audiência recorde de 14,1%.

A adaptação para o cinema não tardou. O filme, com elenco de grandes atores, especialmente nos papéis secundários, como Ryu Raita, Mikuni Rentaro e Tanaka Kunie, não registrou tanto sucesso nas bilheterias, mas consolidou o tema como um dos preferidos pelo público.

A sequência mangá, anime, seriado de televisão e depois cinema tem sido uma constante no mercado de cultura pop. Uma média de 25 títulos de mangá ganham as telonas todos os anos, o que comprova a força do mangá como gerador de conteúdo e de tendências.

Shin-ya Shokudo, o boteco da madrugada

Cena de Shin-ya Shokudo, a minissérie para TV  Foto TBS
Cena de Shin-ya Shokudo. Os quadrinhos foram adaptados para a TV Foto TBS
Um caso interessante aconteceu com o mangá “Shin-ya Shokudo” (Boteco da Madrugada), lançado em 2006. A história é toda ambientada dentro de um boteco sediado num beco do bairro boêmio de Shinjuku. A casa abre somente à meia-noite e vai, madrugada adentro, recebendo gente da noite: prostitutas, garçonetes, mafiosos e donos de boate. Para eles, a comida do boteco promete um momento de felicidade.

O título caiu no gosto popular e, rapidamente, foi produzida uma minissérie para a televisão, que foi transmitida pela Rede TBS. Esta minissérie conquistou o prêmio de melhor novela estrangeira na Coreia do Sul e, devido ao enorme sucesso, uma produtora coreana lançou a sua versão com atores locais.

A versão do longa-metragem, lançado no ano passado, foi um grande sucesso de bilheteria, mas o que chamou a atenção foi o lançamento do livro “Shin-ya Shokudo no Ryori-cho” (Caderno de Receitas do Boteco da Madrugada), reunindo os principais pratos que foram servidos nesse boteco. São receitas simples na linha comfort food, em pequenas porções apropriadas para quem vive sozinho. A publicação é despojada e virou um hit editorial.

Mangás gourmet conquistando o mundo

Os mangás de gastronomia atingiram o status de mangás de informação, tornando-se objetos de consulta especializada e referência bibliográfica até em trabalhos acadêmicos e científicos.

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'As Gotas de Deus', mangá sobre vinhos
Um dos exemplos é “Kami no Shizuku” (Gotas de Deus), um mangá sobre vinhos escrito por Tadashi Agi e desenhado por Shu Okimoto, e integralmente traduzido para o francês. Neste mangá, faz-se referência ao lendário Château Le Puy, objeto de desejo de franceses e o mais vendido no Japão por causa do mangá.

Na história, em 21 episódios, os dois herdeiros de um célebre enólogo japonês têm de resolver 12 enigmas sobre 12 vinhos antes de chegar a um 13º, o chamado Gotas de Deus, exatamente este Château Le Puy. O mangá conquistou, em 2009, o Grande Prêmio do Gourmand World Cookbook Award, considerado o Oscar das publicações gastronômicas. Era a primeira vez que uma publicação japonesa ganhava este prêmio.

Os mangás gastronômicos consolidaram um público exigente e bem-informado de frequentadores de restaurantes e bares. O teor de informações contido nestes mangás elevou a qualidade dos serviços e dos produtos alimentícios para patamares nunca antes alcançados no Japão. A consequência disso é que, no país inteiro, os restaurantes se aprimoraram para oferecer comida de qualidade, tanto no conteúdo, com uma cozinha alinhada na busca constante do umami, como na forma, ou seja, na apresentação visual dos pratos.

Hoje, gastronomia não é só lazer, mas um tema a ser discutido e pesquisado com intensidade.

Jo Takahashi Jo Takahashi foi consultor de arte e cultura na Japan Foundation, onde atuou por 25 anos como administrador cultural. Agora, migra essa experiência para a sua produtora independente, a Dô Cultural, que propõe um conceito design de formatar e desenvolver o projeto cultural.
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