O ninho do fermentado
Numa corrida frenética em Tokyo, com reunião atrás de reunião, nos encontramos com o presidente dos sakes Nanbu Bijin, o sr. Kosuke Kuji, e o diretor, sr. Massaki Hirano, para conversar sobre um projeto que será o maior de toda a minha a carreira (um dia eu conto).
O foco deste texto é outro. Nos encontramos com o sr. Hirano na Estação de Tokyo e fomos caminhando para um dos restaurantes preferidos do chefe (nada melhor que andar com quem conhece as entranhas gastronômicas da cidade). Andando para lá e para cá, chegamos a um complexo de prédios (para variar). No subsolo do lugar, uma enorme vitrine com várias garrafas de sakes, inclusive os do Kuji.
Kuji já havia chegado antes para conversar com o proprietário do local. Não fazia muito tempo que não nos víamos. Precisamente no dia 3 de outubro de 2017. Nos cumprimentamos, fizemos todo aquele protocolo e Kuji foi entrando. Reparei que a placa na porta dizia Jumbichu, ou “Em Preparo”, mas fomos entrando assim mesmo, eu todo encolhido com o pessoal da loja me olhando. Em seguida, chegamos a uma sala privada.Botamos o papo em dia e depois de conversarmos sobre o magnífico projeto (por enquanto, secreto). Kuji falou sobre o restaurante que ultimamente ele vai, toda vez que ele sai da cidade de Ninohe, na província de Iwate. Trata-se de um restaurante todo desenhado em madeiras claras, ótima iluminação, clean e muito agradável. A casa é especialista em 2 coisas. Todo o produto fermentado, o missô, o koji, shoyu, vinagre de arroz, é feito na casa. A seleção dos ingredientes vem de fazendas, sítios com os quais tem parceria. Nada que tem lá é industrializado. Para se ter uma ideia, só tem chá de bebida. De bebidas alcoólicas, tem sakes e shochus, todos eles orgânicos, já que a grande maioria dos rótulos são naturais.
Vários pontos me surpreenderam, a começar pela escolha do arroz. Como de praxe, eu e o Sergio Mizoguchi pedimos arroz comum, mas minutos depois nos arrependemos. Os dois japoneses pediram integral. Quando os teishoku chegaram, confirmamos o grande erro. Kuji-san, que tenho como meu mentor e grande incentivador da minha carreira, percebeu os nossos olhares e dividiu o arroz conosco. Acho que denunciamos exageradamente. Ao comer o arroz integral cozido, nossa senhora, bem mais seco que costumamos ver e sem o odor clássico de ranço. Sabor intenso, rico e saboroso.
Tudo que estava na nossa frente, missozukê, shoyuzukê, kassuzukê, tofu feito na casa, kassujiru, eu comia quase que chorando de emoção. Imaginava uma senhora bem velha e simpática, em uma pensão no quinto dos infernos do interior do Japão, sentada na minha frente. Eu fazia a mesma cara do Takenaka do Samurai Gourmet. De samurai para Sake Samurai, cada vez que o hashi chegava na minha boca, eu fechava os olhos e imaginava o escuro galpão onde fermenta o missô e o shoyu.
Falando em shoyu, Kuji-san pediu o shoyu. Pois é, não havia molheira na mesa. O rapaz trouxe uma espécie de coador com um pote vidro embaixo. Minha Nossa Senhora dos Fermentados, era o mosto do shoyu e os pingos filtrados caindo para baixo. Eu não sabia qual parte provar. O filtrado era de uma delicadeza e ao mesmo tempo forte, encorpado, preenche bem a boca e um dengo em colar em qualquer ingrediente. Já o mosto, exalava um aroma de madeira, um chocolate amargo, fermento, sal, não sei mais o que senti. Um carrossel de aromas e sabores.
Eu, com toda a inocência soltei: “Nossa, esse shoyu com arroz fresquinho e estourar um ovo cru, seria maravilhoso”. Kuji-san, arregalou os olhos e não perdeu tempo. Chamou o garçom e perguntou se havia esta possibilidade. “Será que poderia providenciar uma tigela de gohan e ovo fresco? Sei que não está no cardápio, mas eu pago por isso”.
Acho que Kuji-san percebeu a minha vergonha, que ele mesmo não havia reparado nesta combinação. Ele estava mais focado em casar o shoyu caseiro com sashimi, prato que ele já havia provado e gostado bastante. Ao chegar com ovo cru, reparei em uma diferença. Pessoas de Kansai, colocam o ovo direto no arroz cozido, misturam e depois temperam com o shoyu. Kuji-san já faz o contrário. Mistura a clara e a gema, tempera com o shoyu e só depois derrama em cima do arroz.Fiz do meu jeito e o resultado foi o que vocês podem imaginar. Normalmente, entre uma hashizada e outra, teço comentários. Kuji-san abriu um sorriso e viu que eu havia adorado aquilo. Ele mesmo comentou: “Nossa, acho que Iida-san gostou mesmo. Parou de falar. Até eu estou com vontade de comer”.
Ainda, a casa trouxe junto ao arroz, um furikake caseiro de lasca de bonito temperado no shoyu. Olha, eu podia morrer ali.
Se você gostou deste texto, ou se é um apreciador de comida tradicional, caseiro ou que estuda os fermentados, tem a obrigação de ir nesta casa, quando passar por Tokyo. Mesmo!
IKKON SANSAI
Onde: 2-4-3 Muromachi, Nihonbashi, Chuo-ku, Tokyo, Ed. Yuito – Subsolo 1, Japão
Telefone +81 3-6262-6513
Obs: A casa tem apenas 1 anos de vida e não tem site. Peça para o concierge do seu hotel entrar em contato.