Os estrelados do Guia Michelin (parte 2)
A primeira lista de estabelecimentos estrelados pelo Guia Michelin do Brasil foi lançada em 2015 e inclui apenas restaurantes de São Paulo e do Rio de Janeiro. A seleção envolve avaliações e aspectos como qualidade de insumos, personalidade da cozinha, técnicas de preparo, harmonização de sabores, regularidade e relação entre preço e qualidade.
Entre os destaques paulistanos, dez receberam uma estrela, sendo que quatro foram destinadas a casas especializadas em culinária japonesa: Huto, Kosushi, Kinoshita e Jun Sakamoto. Na edição #16 da Hashitag, apresentamos de onde vem a modernidade do Huto e do Kosushi. Desta vez, trouxemos as tradições e ensinamentos de Jun Sakamoto e de Tsuyoshi Murakami, à frente do Kinoshita.
Kinoshita
A presença do Kinoshita no Guia Michelin não é surpresa, já que o restaurante constantemente está entre os melhores do Brasil. A regularidade, inclusive, é um dos critérios de avaliação.
“Meu acupunturista usa poucas agulhas, e as agulhas são precisas. Eu perguntei para ele: em acupuntura, qual é a tendência? Ele respondeu ‘[a acupuntura] tem milhares de anos. Inventam acupuntura com música erudita, agulha com cheiro de framboesa, que dá choque… Não adianta’. Eu penso igualmente”, afirma o chef Tsuyoshi Murakami.
“Comida japonesa tem história. O que mudou mesmo no Japão em termos de técnica de grelhado, yakimono, niimono, tsukuri ou no kaiseki? É preciso ter um bom processo, um negócio sistematizado, uma boa ficha técnica de cada prato e gente competente para executar”, completa o chef.
Murakami celebrou a vinda do guia ao país. “A chegada do guia representa mais um reconhecimento do Brasil. O Guia Michelin é o mais prestigiado relacionado à gastronomia em razão de sua história. Quando trabalhei em Barcelona há 25 anos, já tinha um certo glamour. É uma grande honra poder estar nele”, conta.
Visita dos inspetores
As visitas dos inspetores acontecem geralmente de maneira muito discreta. Os inspetores recebem um treinamento, realizam uma primeira visita e, após algum tempo, uma segunda para verificar a regularidade tanto da comida como do ambiente e atendimento. Em algumas situações, para obter informações complementares, eles se identificam.
No Kinoshita, o chef Murakami conta que um representante do guia foi ao restaurante um ano antes do lançamento. O propósito dessa visita foi apenas informar que o guia seria lançado e que os inspetores passariam por lá. “Ele deixou o cartão e nem comeu”, lembra o chef.
As visitas de avaliação dos inspetores não foram percebidas pela equipe do restaurante. Mais tarde, todos ficaram sabendo da estrela conferida pelo convite para o evento de lançamento. “Recebemos a notícia com muita felicidade. Foi uma grande festa”, conta Murakami.
Para o chef de um restaurante já consolidado, estar no Guia Michelin seria uma meta? “Como falava o poeta americano [Walt] Whitman, ‘moram milhões dentro de mim’. Entre esses milhões que vivem dentro de mim, um deles, o ‘Murakami negociante’, estava ansioso para entrar nesse guia. Além de tudo o que eu falei antes, é um lance bacana como negócio. O público, uma grande maioria, é direcionado por essas informações”, avalia o chef.
Por outro lado, Murakami mostra-se realista e coerente com o trabalho desenvolvido até hoje. “Vamos supor que seja lançado outro guia no ano que vem, e que o Kinoshita ganhe mais uma, que fique com uma ou que perca a estrela. Isso não pode mexer com o seu emocional. Tem que continuar o que é”.
Jun Sakamoto
“Não tenho problema com o Guia Michelin em si, mas não ligo para os balizamentos e medições que são feitos do meu trabalho, a não ser que seja feito pelo meu cliente”, adianta Jun Sakamoto quando questionado sobre o prêmio. No dia da cerimônia de premiação, ele teve outro compromisso e não foi. Não por arrogância, mas porque estava comprometido com o trabalho voluntário no Hospital Santa Cruz, no comitê de eventos.
“Eu acho que esse excesso de glamorização distorce os valores do ser humano. O próprio Guia Michelin tem uma história de um chef que perdeu uma das estrelas e se matou. Não faz sentido dar tanto valor para uma avaliação que é feita no seu restaurante. Tenho que trabalhar no produto e no serviço para que o cliente volte ao restaurante”, explica ao comentar que o conceito de melhor não é quantificável e, por ser subjetivo, tem que levar em conta que “sou o melhor para o meu cliente, que vai ao restaurante porque considera o meu melhor que os outros naquele momento”.
“Se em uma noite eu tiver trinta clientes, é como se eu recebesse trinta votos, pois quer dizer que eles votaram por jantar lá e não em outro lugar. Gosto de entender as pessoas, até mesmo o que elas não sabem, e fazer o serviço bem feito é o que realmente me dá prazer”, disse Sakamoto.
Para ser atendido por Jun Sakamoto, é preciso fazer reserva antecipada, já que ele atende apenas oito clientes no balcão por noite. “Quando o cliente chega, quero proporcionar uma boa experiência”, analisa, “por isso, o timing de servir cada prato, a luz do ambiente, a qualidade da taça, a cor do balcão, tudo isso é levado em conta”. Toda a preparação do restaurante é feita para que o visitante preste atenção ao que está comendo. E quando isso não acontece, o sushiman diz que se sente irritado: “Porque todo o meu trabalho é feito nesse sentido, no balcão. Já na mesa, é diferente, pois as pessoas geralmente estão lá para comer e conversar”.
Para quem considera o serviço caro, o dono do estabelecimento explica o seu lado da moeda e conta que o negócio não é rentável e que os impostos, encargos sociais, investimento no serviço e ingredientes de qualidade encarecem a conta. “Quando se tem esse tipo de atendimento, o resultado que sobra é pequeno, por isso, preciso ter outros investimentos na Hamburgueria Nacional (no Itaim Bibi e em Moema) e no Junji (no Shopping Iguatemi) ”, comenta.
A cultura no prato
“Toda gastronomia representa uma cultura, nem que seja recente, momentânea ou tradicional”, diz Sakamoto ao destacar a tradição de valores inserida na comida japonesa. “O arroz continua sendo temperado com vinagre, como sempre foi, mas quero encontrar um bom arroz que combine com um vinagre de boa procedência”, completa.
Por isso, ele diz que se inspira em bons exemplos e que viaja ao Japão sempre em busca de aperfeiçoamento. Vai a restaurantes tradicionais para prestar atenção em como outros chefs trabalham e para encontrar ingredientes mais refinados, pois “são experiências que fazem parte de uma evolução sofisticada, já que sempre tem um detalhe para melhorar, por exemplo, a proporção do peixe como o arroz, o ponto de cocção do arroz ou a escolha por um vinagre de fermentação local”.
Apesar de preferir os fornecedores japoneses, Sakamoto conta que se surpreendeu com a qualidade do missô artesanal que encontrou com uma senhora de Guatapará, no interior de São Paulo. “Tinha acabado de chegar do Japão com o que considerei o melhor missô do Mitsukoshi (loja de departamentos que vende produtos selecionados) e me indicaram o missô dessa senhora. Peguei o carro às sete da noite para ir a Guatapará (a 300 km da capital), trouxe um quilo do produto e fiz missoshiru”, continua, “é inacreditável! Percebi que é mais rico, tem uma permanência maior na boca e tem uma harmonia entre todos os gostos com um pouco de acidez, de doçura, de amargor que vêm da fermentação natural”.
A partir dessas experiências e referências que aprendeu no Japão, Sakamoto tenta repassar o que absorveu aos seus pratos, sem excluir seus toques pessoais, afinal, o cardápio não passa de uma seleção das diversas possibilidades dentro da culinária. “Quero trazer um pouco da cultura japonesa, mas com um toque da minha personalidade, por isso, coloco algumas coisas que não são encontradas em lugar nenhum”. Será que vale tudo na cozinha? “Antes de criar, é essencial saber muito bem o básico”, adverte, “mas montar um sushi diferente não é certo nem errado. Simplesmente é”.
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Perfil: Tsuyoshi Murakami, do Kinoshita
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